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O ESTUPRO NA MITOLOGIA GREGA

Artista: Luciano Garbati, imagem da internet

Não é difícil de encontrar narrativas envolvendo a violação sexual de mulheres e deusas na mitologia grega, na verdade é bem comum. Mas por que isso acontece? Qual o significado por trás de ação tão vil em textos de cunho espiritual e religioso? Há diversos trabalhos acadêmicos que discorrem sobre esse tema e traremos algumas dessas considerações aqui.

Talvez o mito mais conhecido envolvendo uma violação sexual seja o de Medusa, que era uma mulher e foi transformada num monstro após sofrer um estupro por parte de Poseidon. O mito é antigo, mas ainda hoje retrata a realidade de tantas e tantas mulheres vítimas de violência sexual e que ainda são culpabilizadas pelo ocorrido.

Mas qual o papel dessa narrativa para os gregos da Antiguidade? Antes vamos definir o que é mito. μυθέω (mythéo) apresenta vários significados, por exemplo, ‘falar’, ‘narrar’, ‘conversar’, ‘refletir’, ‘contar’ – todas as significações se encontram no campo semântico da oralidade que pressupõe um sujeito que fala/narra/conta uma história e um ouvinte (Caldas, 2023), ou seja, a revelação de um acontecimento pela oralidade. Essa revelação pela palavra mais tarde ganha a companhia de instrumentos musicais e se torna também entretenimento em festas e tavernas.

Para Brandão, 2010, o mito “expressa a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações.” Outra função a ele atribuída seria a de servir ao homem como modelo exemplar de todos os seus atos, uma vez que (Caldas, 2023) “os mitos lhe asseguram que tudo o que ele faz ou pretende fazer, já foi feito no princípio dos Tempos, in illo tempore”, isto é, “eles constituem, portanto, a súmula do conhecimento útil.” (Eliade, 2011), como fatos cotidianos de um povo, costumes e regras sociais também.

Então, ao contrário do que muita gente pensa, os mitos não têm como função apenas contar a genealogia de deuses ou falar sobre a criação do mundo ou trazer uma mensagem do mundo espiritual, eles também têm a função de ensinar como homens e mulheres devem se portar em sociedade. Dito isto, podemos iniciar nossa análise da corriqueira ocorrência de violação sexual do corpo feminino nos diversos mitos gregos.

Retomando o mito de Medusa: Medusa era uma das sacerdotisas de Atena, a mais bela de seu séquito, e como tal deveria manter sua castidade. Mesmo após fugir das investidas do deus dos mares, Poseidon, Medusa acaba sendo tomada à força por ele. Ao contar o ocorrido à deusa Atena, é punida pela violência sexual sofrida e então transformada num monstro com cabelos de serpentes, que petrifica quem ousar olhar para ela. Além de sofrer uma violência sexual, de ser culpabilizada e punida por isso, ainda passará a eternidade sozinha, pois todos que chegarem perto serão transformados em pedra.

O que podemos extrair desse mito?

1. Que mulheres devem cuidar e proteger a sua virgindade. Isso era um bem valioso, já que para se casar a mulher deveria ser virgem, pois assim, garantiria a linhagem de herdeiros de seu marido.

2. Que ainda que sob a proteção de uma DEUSA, as mulheres estavam desprotegidas e vulneráveis, aos caprichos masculinos.

3. Que a vontade de homens e deuses masculinos está acima de qualquer lei ou regra social.

4. Que não há sororidade, não há união entre mulheres ou entre mulheres e deusas femininas.

5. Que as mulheres sempre estarão em uma posição de vulnerabilidade e sem condições de reagir e se proteger sozinha.

Estamos falando apenas do mito de Medusa, mas esse padrão se repete em diversos outros mitos como:

a. Perséfone que é raptada por Hades, seu tio. Mais tarde, sua mãe, Deméter descobre que havia sido dada a Hades por Zeus, sem seu conhecimento ou consentimento.

b. Dafne, que para fugir das investidas de Apolo, teve que ser transformada em uma planta, uma árvore de louro.

c. Zeus que estupra a irmã, Deméter, entre outros.

d. Calixto, uma ninfa de Ártemis que foi seduzida e enganada por Zeus e depois punida e transformada em ursa e mais tarde eternizada na constelação de Ursa Maior.

e. Syrinx, outra ninfa de Ártemis que prefere a morte a ser violada e punida depois.

O que ilustramos aqui é a utilização do mito, por uma sociedade patriarcal, misógina que determinou que o papel da mulher era o de cuidar do oikos (unidade familiar) e de gerar filhos herdeiros da linhagem masculina apenas, sem o direito a ter posses, a estudar, a escolher como viver sua vida, enfim. Há quem diga que essa análise pode ser anacrônica, mas será mesmo? Por que ainda hoje vemos uma tentativa de moldar a vida da mulher, de ainda ter o corpo feminino como algo não pertencente à mulher, mas sim aos homens e a nossa sociedade ainda machista, patriarcal e misógina, que quer determinar como devemos viver nossa sexualidade e que tenta nos impor uma maternidade compulsória.

Desde cedo temos contato com esses mitos, com o estudo da sociedade que foi o berço da civilização, mas sem realmente analisar de forma profunda a mensagem passada e replicada através dos tempos. E poderíamos ficar página e páginas aqui discorrendo sobre esses mitos e sobre os símbolos de controle feminino inseridos e tentativas de apagamento do feminino sagrado neles, mas esse não é nosso objetivo aqui hoje e sim trazer à luz da discussão esse tema que por vezes parece passar despercebido e citar a importância de analisar o contexto social por trás de regras e dogmas religiosos. Que a partir de agora possamos olhar para a mitologia não apenas num contexto religioso, mas também num contexto social e perceber como os mitos gregos influenciaram gerações e gerações de pessoas ao redor do mundo.

Referências

CALDAS, Viviane Moraes de. A VIOLAÇÃO DO CORPO FEMININO NAS NARRATIVAS MITOLÓGICAS DE MEDUSA E FILOMELA. VERBUM (ISSN 2316-3267), v. 12, n. 3, p.173-192, dez. 2023

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. III. 16ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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